O Caminho Para Um Espaço Mais Aberto (The Path Towards a More Open Space)

Originally published in Orlando L., Rissardo B., Rosa I, and Triana G, Jardim Filhos da Terra: Reflexões de uma Experiência Construída, Escola da Cidade, 2018.

Para que o futuro seja aberto, o espaço também deve sê-lo. (For the future to be open, space must be open too)

Doreen Massey (2005:12)

Quando do Caminho Filhos da Terra, atrás do edifício de administração do Mutirão, olhamos para o Sul, vemos em primeiro plano as casas autoconstruídas de Jardim Palmares. É o ponto de partida de um tecido urbano sem fim. A vista varre os sobrados de alvenaria antes de alcançar o paliteiro de arranha-céus do centro de São Paulo, a quinze quilômetros. Eu percorri este caminho todos os dias durante o meu trabalho de campo no verão para apreciar visualmente o resultado espacial do modelo centro-periferia da expansão de São Paulo. Como têm destacado alguns acadêmicos de estudos urbanos, este modelo não explica a complexidade social da intersecção entre centro e periferia enquanto construtos geográficos, culturais e políticos.

Conheci Isabella, Luiz, Glauber e Bruno nessa intersecção: um encontro periférico entre atores do centro que, da periferia, se dirigem ao centro. Eu proponho que esta condição de deslocamento pode ter favorecido a nossa visão do espaço como o que, de fato, é: aberto, como “sempre em processo, nunca como um sistema fechado.”[1] A geógrafa Doreen Massey adverte que o espaço não é um recipiente para atividades e identidades já constituídas, mas sim produto da heterogeneidade e multiplicidade de trajetórias históricas diferentes. Essas histórias não estão fundamentadas nem na autenticidadedo lugar, nem na abstraçãodo espaço. É dentro deste quadro que analiso o “espaço (social)” configurado em torno do Caminho como “produto (social).”[2]

© Ralf Korbmacher

Observei Isabella, Luiz, Glauber e Bruno durante um de seus dias de trabalho no Caminho: debruçados, transportando cascalho, escavando, erguendo taludes de arrimo. Suados, cobertos de poeira, e um pouco despenteados, sua pele queimava ao sol de verão. A fadiga da construção, historicamente relegada ao operário, era aqui vivenciada por futuro arquitetos. Não há novidade nesta imagem se considerarmos outros casos de estudantes de arquitetura envolvidos nas construção.[3] É interessante, no entanto, que esta abordagem pedagógica de “mão na massa” surja no momento em que as tecnologias de uma era pós-humana (por exemplo, design paramétrico) emergem como dispositivos protéticos para vivenciar a arquitetura e a cidade à distância. O teórico de arquitetura Jonathan Hale chama essa transformação da tecnologia de design de transparente para opaca de “(des-)encarnação na arquitetura” (dis-embodiment in architecture).” A zona de exceção do Mutirão—onde os alunos manuseiam um martelo ou uma escavadeira livres de preocupações de segurança ou contratuais—configurou um espaço a golpe de tecnologias transparentes. A transparência da terraplanagem, das paredes de tijolo, ou da drenagem, em contrapartida à opacidade de algoritmos e diagramas vetoriais num monitor, propicia uma compreensão diferente da arquitetura. Essa compreensão tem potencial pedagógico, considerando-se que, na maioria dos casos, esse conhecimento fica circunscrito aos especialistas: a construtora, o diretor de obras, o responsável de segurança e os operários da construção civil. Após um ano de imersão física na materialidade da arquitetura, Isabella, Luiz, Glauber e Bruno provavelmente nunca mais verão uma linha ou um retângulo no AutoCAD como uma forma geométrica: eles verão um tijolo, uma viga, um canal de água, ou uma laje de concreto com um peso, custo, logística e vida social específicos.[4]

© Ralf Korbmacher

Mas a ocupação do espaço de construção não termina com a experiência corpórea e material. Com o “desejo de construir” de Isabella, Luiz, Glauber e Bruno, veio a responsabilidade de plasmar as condições de construção, incluindo a captação de recursos, a aquisições de materiais, e as negociações com os usuários e gestores do Mutirão. A própria criação de tais condições colocou em evidência a vulnerabilidade da prática arquitetônica no tocante à estética, à perícia e às interações sociais.

Assim, primeiro, ao implicar-se com a realização da obra Isabella, Luiz, Glauber e Bruno conheceram o que a maioria de seus colegas dificilmente chegam a conhecer: a contínua reabertura de decisões de design no alinhamento de expectativas com possibilidades. Nesse contexto o desenho perde força como ferramenta totalizante de controle da produção arquitetônica (a que se referia Sérgio Ferro). A produção passa a condicionar o desenho.[5] Os desenhos são reajustados, reabertos, constantemente retrabalhados em sintonia com o canteiro. Assim, uma barreira geológica, um talude, a escassez de recursos financeiros ou materiais implicava a alteração do projeto de Isabella, Luiz, Glauber e Bruno, que incluía croquis à mão num caderno.[6] Essa epistemologia do projeto/desenho na realização arquitetônica tem enorme potencial:para o espaço ser aberto, o projeto deve, também, ser aberto?

Segundo, borrava-se a linha entre saber homologado e saber-fazer sempre que a lógica do canteiro em algumas ocasiões prevalecia sobre a lógica do projeto. Wilson e Ailton—figuras icônicas de mestres de obra que forneceram conhecimento prático construtivo—ignoravam o projeto com a mesma frequência com que Isabella, Luiz, Glauber e Bruno ignoravam os detalhes construtivos. Esta condição de “ignorar simétrico” nos lembra que é a concomitância de conhecimento de projeto e conhecimento de canteiro que torna a arquitetura possível.[7] Sendo assim, a questão de quem constrói a nossa arquitetura e sob que condições de trabalho o faz é integral à responsabilidade ética do arquiteto desde o início—além das condições de trabalho dos chamados “CAD monkeys” (operadores de CAD) em certas empresas de arquitetura, que são mal pagos e estão sobrecarregados e hiper-estressados.[8]

Terceiro, o espaço de construção é também um espaço de emoções, humores, equívocos e expectativas frustradas. Esta arquitetura do afeto pode influenciar o resultado tanto quanto o custo e o tempo da obra—exceto pelo fato de que não aparece num diagrama de Gantt, o cronograma do projeto. Isabella, Luiz, Glauber e Bruno logo perceberam que nem todos os problemas são problemas de design, mas que era preciso ajustar sua comunicação e repensar suas expectativas no decorrer de todo o processo, o que nos leva a meu último ponto.

© Ralf Korbmacher

É possível que Isabella, Luiz, Glauber e Bruno iniciaram o projeto com a impressão de que, sendo seu trabalho pro bono e autofinanciado, não existisse a figura do cliente. Talvez achassem que eles próprios eram os clientes. Trabalhar pro bono (ou autofinanciando um projeto) não oferece nenhuma garantia de primazia na tomada de decisões, e assim deve ser. Como recém-graduada eu cometi o mesmo erro de julgamento mais de uma vez: o custo foi alto, tanto do ponto de vista financeiro como emocional. Um dia sugeri que Isabella, Luiz, Glauber e Bruno considerassem seus ciclos recorrentes de entusiasmo e decepção e os do cliente como recursos heurísticos para entender as incertezas da produção arquitetônica para além de sua zona de conforto—quando, por exemplo, existem vontade política de cima para baixo, clareza de termos e cifras contratuais, e processos hierárquicos na tomada de decisões. 

Um desses ciclos de (des)ilusão surgiu, no início, pela falta de uso do Caminho. Um dia Isabella, Luiz, Glauber e Bruno me disseram que as crianças não estavam se apropriando do Caminho, e Jady, diretora do Mutirão, confirmou que era “o espaço dos arquitetos.” Uma vez que Isabella, Luiz, Glauber e Bruno aceitaram a dinâmica em jogo, reabriram o espaço: inventaram atividades para ativar o Caminho, o que incluiu envolver as crianças na fase final da construção. Num contexto de periferia no qual as áreas abertas/verdes e públicas são escassas, a criação de memórias para crianças é fundamental para aprender a habitar um espaço semipúblico como o Caminho.[9]

© Luiz Orlando, Bruno Rissardo, Isabella Rosa, and Glauber Triana

A educação dos arquitetos é um fenômeno precário. Revelar demasiado cedo as realidades da prática . . . mataria o idealismo produtivo que você inevitavelmente precisa como arquiteto. Por outro lado, a arquitetura precisa de um verdadeiro conhecimento da prática, se for para produzir qualquer crítica significativa da mesma.[10]

Isabella, Luiz, Glauber e Bruno decidiram antecipar este encontro com a prática arquitetônica, e encontraram um Caminho viável sob condições moderadamente controladas. Sua intervenção expõe a vulnerabilidade da prática e estética arquitetônicas. No meu entender, é questão de que sejamos capazes de imaginar o espaço de maneira diferente, aberto, ou, como argumenta Massey, 

“arrancar o ‘espaço’ daquela constelação de conceitos em que ele tem sido, tão indiscutivelmente, tão frequentemente, envolvido (estase, fechamento, representação) e estabelecê-lo dentro de outro conjunto de ideias (heterogeneidade, racionalidade, coetaneidade…caráter vívido, sem dúvida) onde seja liberada uma paisagem política mais desafiadora.”[11]

Notas

[1]Massey, Doreen. For space. Sage, 2005, p. 11 (Trad Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Maciel, Hilda P. e Haesbaert, Rogério, Bertrand Brasil, 2008).

[2]Lefebvre, Henri. The production of space. Trad. de Donald Nicholson-Smith. Blackwell, 1991, p. 26.

[3]Só para citar dois deles, veja Outlaw Builder Studio (Arq.102ABC), umatelier de pesquisa e construçãona Universidade da Califórnia em Berkeley em 1971-72, e Rural Studio, umprograma de projeto e construçãona UniversidadedeAuburn(Escola de arquitetura, Planejamento e Paisagismo) noAlabama fundado em 1993, ainda ativo. 

[4]Ao estender maiseste conceito de techné,entramos no âmbitodo novo materialismo e da agência de objetos. O processo cotidiano da engenharia sociomaterialdo Caminho pode revelar a agência dos próprios materiais. Jane Bennett chama-lhe a agência do”poder-de-coisa” (thing-power), ou a “capacidade das coisas . . . não só para impedir ou bloquear a vontade e os projetos dos seres humanos, mas também para atuar quase como agentes ou forças com trajetórias, propensões, ou tendências próprias” (Vibrant matter: A political ecology of things. Duke University Press, 2009, p. 2). Esta leitura agregasignificado ao trabalho de Isabella, Luiz, Glauber e Bruno que nos lembra o potencial epistemológico de sua pequena porém oportunaintervenção no terreno.

[5]Ferro, Sérgio. O canteiro e o desenho. Projetos Editores Associados, 1982, p. 25.

[6]Juhani Pallasmaa argumenta contra a”falsa precisão e aparente finitude do desenho do computador” em contraste como imprecisão do croquis, que permite uma conexão mais profunda entre representação e realidade. VideThe thinking hand: Existential and embodied wisdom in architecture. Chichester: Wiley, 2009, p. 96.

[7]Horst Rittel propôs o conceito de “ignorar simétrico” em processos decisórios em planejamento, onde “não háperitos (o que é irritante para os peritos).” Nocaso do Caminho, proponho o conceito de Rittel para ilustrara concomitânciade diferentes formas de especialização, todas elasfundamentaispara o resultado final. VideProtzen, Jean-Pierre e David J. Harris. The universe of design: Horst Rittel’s theories of design and planning. Routledge, 2010, p. 159.

[8]Sobre o conhecimento de trabalho manual, vide, respectivamente, acoalizão de arquitetos, ativistas, acadêmicose educadores que aborda a questão premente: quem constrói a sua arquitectura? Em http://whobuilds.org eDeamer, Peggy, Ed. The architect as worker: immaterial labor, the creative class, and the politics of design. Bloomsbury Publishing, 2015.

[9]Oficinas fotográficas e entrevistas com as crianças no Mutirão revelaram que lhes custa entendero espaço público da periferia como seguro, acessívele para eles.

[10]De Graaf, Reinier. “I Will Learn You Architecture!”Volume45, “Learning”, 16 de outubro de 2015. 

[11]Massey, Doreen. op.cit,p. 13.